《MEMÓRIAS DE UM DEUS - Ficção [português]》AS GRANDES ÁGUAS – 115.214

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Como isso pode ter sido um castigo? Sim, parece que foi muito cruel, mas... Havia tanto amor nas vozes que ouvíamos, na mão que nos acolhia. Tem certeza de que foi um castigo?

I

- E então? – perguntou Ariel aflita, vendo preocupada que Lázarus estava sozinho e mostrava desânimo e preocupação no rosto.

- Eles não estão com medo...

- Você falou que Par Adenai vai ser destruída, bem como todos os ninhos?

- Eles sabem, meu amorzinho. Mas, você os conhece bem. Eles não estão minimamente preocupados.

- Então me conte, Lázarus. O que os deixa tão confiantes e tranquilos? O que eu não sei? Você os conhece melhor que qualquer um, e todos eles te respeitam muito – pediu, os modos agitados e o rosto contrito de dor, as linhas do rosto numa súplica silenciosa.

- Desde que essas guerras começaram que tudo aqui parece muito apressado, nos dando pouco tempo para darmos atenção aos que amamos – falou Lázarus, a face tranquila, indicando para ela sentar-se ao seu lado na ampla varanda.

Ela se sentou, os olhos varrendo os lados e os ambientes longínquos, uma saudade antecipada espremendo seu coração. Como se balançasse a cabeça se recusou a se deixar cair naquela tristeza. O tempo exigia um outro tipo de resposta.

> Os dragões – continuou Lázarus vendo que Ariel voltava a prestar atenção nele, - você bem sabe, são os seres mais honrados e nobres que há por aqui, mesmo os mais guerreiros e poderados deles. Nada vai acontecer a eles, nem a qualquer ovo deles – tranquilizou. – Eles estão de partida, Ariel.

Ariel ficou com os olhos parados, a boca entreaberta, os pensamentos estancados de súbito, a mente repetindo a mesma frase, inúmeras vezes: “Eles estão de partida, Ariel”.

Então, subitamente, o mundo se encheu novamente de sons e movimentos, e ela se assustou.

- Como... Como assim? Partida, para onde?

- Você nunca percebeu que, diferentes de nós, eles não estão limitados até a quarta dimensão? – sorriu.

- Ahhhhh... Então... Então eles estão partindo...

- Sim, Ariel. Eles não estarão aqui quando a destruição começar.

- Mas, mas... Eles vão voltar, depois que tudo voltar ao normal? – perguntou, os olhos cheios d’água.

- Meu amor, isso é com eles. O importante é que eles estão fazendo a própria vontade, e não estão sofrendo, nem vão sofrer. Isso não é bom?

Ariel não falou nada, mas apenas voltou os olhos para longe, onde se deixou perder, enquanto se mantinha dentro do abraço de Lázarus. Lázarus sentiu a energia amiudada e pensativa de Ariel, e soube o que ia em sua alma. Devagar a puxou mais para si, estendeu as asas e a aconchegou bem apertadinho.

- Saudades... Esse é um tempo de uma saudade atrás de outra – cismou.

II

Os vaticínios eram taxativos, e agora cada vez mais claros e urgentes. Os que estavam fadados a não sobreviverem, mesmo que pudessem voar, não voariam; os que podiam viver nos mares, nos novos e aumentados mares não viveriam; os que podiam viver nas profundezas da terra lá não encontrariam abrigo. E nada poderia ser feito contra isso.

Emanoel, Ariel, Lázarus e muitos outros planejaram apressadamente o modo correto de proteger os que se mostravam prontos para essa proteção mais especial e pontual, e por isso se apressaram.

As tarefas foram corridas e intensas. Milhares de corpos precisaram ser envolvidos em capa de energia e ocultados em nichos preparados nas entranhas da terra e em grandes salões nas montanhas de pedra, para que resistissem ao tal evento, e muitos tiveram que ser “separados” e levados para a quarta, onde foram postos adormecidos.

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Ariel ficou atenta e sentiu um ronco surdo dentro da terra.

Na quarta sondou seus amigos e familiares, e sorriu ao ver seus rostos como que adormecidos e tomados de uma enorme paz, com exceção de Avenon, como já esperava, que trazia aquele sorriso que nunca o abandonava. Mas, estavam todos bem, conferiu com satisfação.

Voltou a atenção para a terceira, e viu enormes pirogas e barcos de dimensões colossais plantados na terra, a maior parte sobre altas montanhas, onde as águas demorariam um pouco mais para chegar e, quando chegassem, não chegariam com a força descomunal que se esperava nos vales baixos e áreas costeiras e dentro dos lagos represados.

- As correntes dos mares vão ser ainda mais alteradas – Ariel cismou, flutuando pensativa, examinando o fundo dos oceanos. – Ali vai se abrir uma corrente de água que vai lançar uma água mais quente para o oeste – conferiu. – Uma nova terra vai ser aberta, exposta do manto espesso de gelo.

- Muita coisa vai mudar – falou Lázarus, observando as nuvens gigantescas e escuras que se formavam no norte e no sul. – Uma pena não termos conseguido acomodar muitos mais na quarta.

- Foi muita sorte termos arrumado aqueles lugares protegidos dos demônios – sussurrou Ariel. – São pequenos, estão abarrotados, mas vão resistir pelo tempo necessário. Os anjos tiveram muito trabalho para prepará-los. Que bom que teve fé, Lázarus – saudou Ariel contente.

- Tudo vai dar certo, meu bem. Olhe, começou – apontou.

Bem à frente deles uma enorme massa de gigantescas nuvens avançava. O céu parecia eletrizado enquanto os sons e cheiros dos relâmpagos pareciam a tudo dominar.

Ariel gritou de felicidade, e todos pararam para ver. Ao longe levas e levas de dragões iam subindo e se desfazendo em línguas de fogo em direção ao espaço, sumindo lentamente de encontro ao negror. Muitos paravam, como se estivessem despedindo, e depois se iam.

Ariel e Lázarus se elevaram depressa, em direção a um grupo de dragões que insistiam em permanecer naquele céu revolto.

Quando chegaram os dragões fizeram um círculo em torno deles: Shen, Ádrio, Braba, Arrivandro, o vermelho Adron e muitos outros que eles haviam resgatado. Em silêncio ante a tempestade as energias se enrodilharam entre os anjos e os dragões.

Subitamente eles recolheram suas energias, fletiram os pescoços em despedida e se foram em suaves flâmulas de fogo.

Ariel e Lázarus foram despertados de seus pensamentos quando uma rajada violenta, como um vácuo, os atingiu, logo seguido de um explosivo relâmpago.

Depressa desceram ao encontro dos outros no momento em que cortinas espessas se abriram, despejando toneladas de água, avançando para se encontrar com as cortinas imensas que desciam do norte.

Tinha certeza de que esse mundo nunca vira nada assim.

- Quarenta dias – suspirou, se preparando para sua missão mais dolorosa.

Com o coração apertado viu imensas vagas se elevando nas águas que se tornavam cada vez mais raivosas. Então, centelhas começavam a cintilar no chão do planeta, quando os corpos que usavam eram destruídos pelas águas raivosas.

- Lá, olhe – apontou Lázarus, a voz cheia de luz. – Vai dar certo Ariel, vai dar certo – exultou, vendo um imenso barco, pequenino daquela altura, ser colhido majestosamente por uma corredeira e tomar um caminho por dentro de um vale tomado pelas águas.

Durante os primeiros dias de elevação das águas viram muitos mortos boiando nas águas revoltas ou no fundo dos novos mares, ou pedaços deles afundados nas águas. Mas não era com isso que se importavam. Sem descanso cuidavam da segurança dos barcos e das centelhas de milhões que se depreendiam dos corpos, carinhosamente as retirando e elevando-as, momento em que eram recolhidas e encaminhadas pelos anjos.

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Mas, havia muitas situações em que precisaram intervir com energia.

Frente a um barco longo coberto por um telhado de palhas se ergueram dezenas de imensos dahrars demônios, que podiam se manter sobre as águas. Mas era visível que já estavam cansados, e desesperadamente procuravam se aproximar do barco para tomá-lo e, possivelmente, ter os ocupantes como mantimentos. E isso estava acontecendo por quase todo o mundo, o que estava obrigando a intervenção de grande quantidade de anjos.

Lázarus e Ariel se postaram frente ao barco, e se viram obrigados a liquidar até o último dos dahrars, tal como acontecia em outros lugares.

- Veja lá, Lázarus – gritou Ariel tomada de urgência, apontando para a escuridão ao sudoeste.

Após dar cabo do último dahrar Lázarus olhou para onde ela indicava, e o que viu o encheu de indignação, que logo tratou de controlar.

Um grupo de demônios atacava com impiedade um barco de homens e pessoas.

Quando eles chegaram o barco já estava a pique.

Lázarus tomou três anjos que desciam e foram atrás dos demônios, que procuravam outras embarcações para delas darem cabo, enquanto Ariel e alguns outros anjos recolhiam sobreviventes e os distribuíam entre outros barcos.

Quando Ariel retirou o último sobrevivente das águas, um pequeno menino e o segurou contra seu peito, viu um anjo se afundar no oceano, de onde foram surgindo as centelhas dos que haviam morrido ali, no ataque dos demônios.

Não havia mais diferença entre os dias e as noites, porque as nuvens eram um único e espesso tapete cobrindo o mundo, apenas deixando visível que nada mais havia do que água, quando os relâmpagos riscavam o ar molhado.

Até as montanhas mais altas do planeta não podiam mais ser encontradas.

- A dor é grande em Gaia – falou, vendo inúmeros e imensos vulcões despertos sob as águas, o que tornava aquele único oceano revolto em alguns pontos.

Tinham que cuidar para afastar os barcos desses lugares.

Ariel deixou de contar os dias a partir do quinto dia, porque a azafama do trabalho era muito árduo.

Foi em algum tempo, muito à frente, que a chuva foi parando lentamente.

Os anjos e alguns dos vigilantes ficaram em silêncio, vendo os céus se abrirem, e o azul esquecido ir retornando como pequenos furos no telhado da noite.

Então, ainda não havia terra, nem mesmo um pequeno pico das mais altas montanhas se conseguia avistar. Tudo era apenas água, por toda a extensão que se olhasse.

Lázarus subiu um pouco mais junto com Ariel e alguns anjos, e de lá puderam ver pequenos pontos negros no único mar que agora havia, plácido como uma lâmina de vidro. Eles estavam em todas as direções, em todos os quadrantes, e eram muitos deles.

- Que bom, que bom – suspirou Emanoel. – Há vida em todos os barcos – suspirou aliviado, apontando para os polos, onde as águas desciam velozmente como gigantescas e intensas nevascas, e voltavam a cobrir os espaços que ocupavam antes do dilúvio.

- Logo tudo vai terminar e as águas vão correr em novos leitos nessa nova terra – saboreou Ariel.

- Não vejo mais qualquer sinal dos dahrars, e das mais terríveis pessoas fantasmas e demônios. A terra está limpa deles – observou Ariel, a voz e o coração não tão alegres como acreditou que poderia estar.

- Acha que valeu a pena, Emanoel? – sofreu Lázarus. – Há muitos anjos de imenso poder que poderiam ter resolvido o assunto deles quase que em um segundo. E o UM poderia ter resolvido isso como se isso nunca tivesse acontecido. Vi dores demais...

- Não cabe a mim julgar o UM, nem tampouco a vocês, meus amigos – repreendeu.

Emanoel ficou em silêncio, enquanto via algumas aves deixando os barcos, que desciam em algumas pontas de montanhas que rapidamente surgiam por todo o planeta, como pequeninas ilhas. A terra estava se esvaziando rapidamente.

Então, sob o olhar dos dois, ficou em silêncio, como se estivesse ouvindo algo de muito longe.

- Vocês sabem, e os que ficarem para povoar a terra saberão: O UM somos nós, e preservamos a experiência. Olhem – falou, apontando para o norte.

- O que é isso? – maravilhou-se Ariel, vendo aquilo surgir no céu.

- O UM acaba de firmar um contrato com Gaia: a criação não será, pelos tempos à frente, reiniciada pelas águas. Esse anel multicolorido é a expressão desse acordo firmado – contou, tomado de adoração. – Metade dele está no céu, e a outra metade na terra ou nos mares – sussurrou.

Lázarus não pode deixar de rir de alegria, tal como muitos ali, extasiados com a visão dos anéis que surgiam por todo o globo, para que cada barco tivesse conhecimento.

- Tomara que agora esse seja um planeta de felicidade... – suspirou um anjo no meio de muitos outros.

Lázarus observou o anjo, e resolveu deixá-lo pensar assim. Que mal tem em se embalar esperança? Aquele era um planeta de experiências, e dos que mais se aprofundara nela, e seria assim por muito tempo. Um dia isso seria alterado, mas não por agora.

- Vamos, temos que trazer nossos amigos de volta.

Com a ajuda dos anjos viram que não fora uma tarefa difícil, como fora quando os prepararam. Talvez tenha sido o início dos procedimentos de colocá-los a salvo que tenha tornando tudo mais difícil, pressionados que estavam pela urgência, pelo tempo escasso, e, ainda mais, por ver seus olhos como que se despedindo.

Mas, agora, era tudo mais leve e cheio de abraços e risos.

Os casulos de energia eram retirados do fundo das cavernas e grotas sob as águas e do meio dos lamaçais e depositados nas montanhas já surgidas, enquanto da quarta todos seus corpos sutis eram trazidos e novamente acondicionados. Era uma festa quando iam despertando.

Após se remexerem incomodados, abriam e fechavam os olhos repetidas vezes, até que, por fim, lentamente iam se erguendo do chão.

Ariel fez questão de unir os que haviam sobrevivido da aldeia, como Mulo, Avenon e Sol, bem junto de si, e cuidou de cada um, do despertar de cada um.

Então, quando todos já estavam despertos e em segurança, rapidamente Lázarus se elevou, e quando voltou, trazia dentro de um pequeno barco Ánacle, FlorDoAr e Valentina, que foram recebidos com grande felicidade.

Quando Lázarus desceu no meio deles e os viu todos juntos com Ariel seu coração cresceu e, como nunca pensara que poderia acontecer, gritou de alegria, indo de um em um, abraçando apertado e... chorando baixinho, feliz demais em ter cada um deles de volta.

Assim que tudo se acalmou, reunidos numa nova aldeia construída ao lado de um mato que logo iria se tornar novamente uma floresta, à frente de uma fogueira, Lázarus pôs todos a par do que havia acontecido, enquanto estavam adormecidos.

- Eu gostaria de ter participado disso – cismou Sol alto.

- É, eu também – concordou Avenon. – Ainda não entendi muito bem por que tivemos que ser tirados disso...

- Meus amigos, a ação disso era nitidamente contra os dahrars e nefelins de poder alto e poder escuro. Por alguma razão, esses não podiam se sustentar muito no ar, mesmo os que eram do próprio ar, e acabavam se afogando no mar. Então, só os que podiam ficar indefinidamente flutuando no ar, abaixo ou acima das nuvens, conseguiram sobreviver. Havia um poder muito maior agindo aqui.

- E isto é uma grande verdade – confirmou Emanoel descendo ao lado dele, sentando-se também de frente para a fogueira. – A limpeza foi muito maior do que pensávamos.

- É mesmo? – falou Valentina, tomada de curiosidade.

- Sim. Vejam, descobrimos há pouco tempo que os demônios e os vigilantes estão impedidos de procriar com os humanos e com as pessoas ou qualquer raça derivada que tenha sobrevivido nesta terceira dimensão.

- Impedidos como? - estranhou Mulo.

- Nada nascerá dessa união – falou. – E aos anjos essa proibição surgiu, e eles a cumprirão. Os anjos não mais se unirão com homens, pessoas ou demônios, ou qualquer das raças cruzadas que porventura tenham persistido.

- Então Ele sabia... - Lázarus sorriu, olhando feliz para os nefelins e dahrars ao lado. – Ele sabia que iriamos proteger alguns dos dahrars e pessoas demônios...

- Sim, Ele sabia. Quem sabe não foi Ele que arranjou para que assim tomássemos tal providências? – falou Emanoel esticando as mãos para o fogo.

Mulo, visivelmente aliviado, tomou a mão de Valentina entre as suas, os olhos luminosos perdidos nas chamas.

- E, o que vem agora, Emanoel? – perguntou.

- Ah, meu amiguinho, ao que tudo indica, essa experiência subiu de nível. Não lhe parece?

- Mas, algumas coisas parecem que não vão mudar – falou Lázarus, fazendo menção a hordas de demônios e vigilantes que olhavam com avidez para o novo mundo.

- O papel deles, e o nosso, aqui ou em outros mundos, ainda não está terminado, meu amigo. Tem muita coisa para acontecer ainda, e coisas grandiosas que darão um sentido do porquê Gaia tem tanta importância para o UM. Só precisamos descobrir, mesmo que acreditemos já saber – Emanoel falou se levantando e se erguendo suavemente na noite, onde se perdeu.

Lázarus e Ariel flutuavam sobre o mundo, checando como ele ficara.

- Estranho, mas vejo que thiahuanaco está lá, com poucos danos, bem como os portais parecem que não foram tocados.

- A força das águas tão alto assim foi mais fraca – Lázarus conjecturou.

Então, tomado de esperança tomou o rumo da parte sul do continente que um dia fora Mércia. Não estava muito diferente, mas estava mudado.

Ariel não viu os morros Belt, porque agora havia ali somente uma grande montanha solitária. Os rios foram alterados em seus cursos. As montanhas de Jade estavam irreconhecíveis, e nenhuma construção se podia avistar, estando até mesmo suas fundações desaparecidas.

- Par Adenai se foi... – suspirou Lázarus, a voz grave e distante.

- FIM -

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