《MEMÓRIAS DE UM DEUS - Ficção [português]》A DENSIDADE DA ESCURIDÃO

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Eu já vi muita coisa, mas não estava preparado para aquilo. No entanto confesso, nem gostaria de ter sido preparado pois, se o tivesse sido, bem cedo teria entendido de que tal coisa era possível, e o mundo poderia ter sido destruído.

I

Lázarus parou o dahrar, a mão o segurando pela garganta, a ponta da asa esquerda enterrada em seu peito. Já observava o próximo inimigo quando sentiu algo, um pouco distante. Era como um lamento tingido de desesperança, uma dor intensa e sombria. Olhou ao lado, para Ariel, e viu que ela estava concentrada na batalha, juntamente com algumas pessoas e homens.

Mantendo a atenção nas distâncias, tentando entender o que poderia ser, sem dizer nada, como se fosse algo sem importância, matou o dahrar e se jogou para cima, tomando a direção oeste, onde as nuvens estavam escuras e a terra estava sob um manto sombrio e pesado.

Ainda tentando compreender o que despertara sua atenção, foi diminuindo a velocidade enquanto se aproximava dos Montes da Rocha. No monte mais ao oeste, no lado voltado para a nascente do rio Filas Tenebroso, sentiu algo pesado demais, algo escuro e pecaminoso.

Devagar flutuou ante sua face, até que viu a boca de uma caverna, um pouco abaixo do topo. Com cuidado desceu na boca da caverna, de onde sentia partir aquele sentimento estranho. Era uma caverna ampla de estreita boca, motivo pelo qual o sol não se adiantava muito para dentro. Os lamentos vinham mais para dentro da caverna, e eram tão pesados e tinham tal sensação de morte e decrepitude que até chegava a lhe causar severo desconforto.

Ainda sem tocar o solo se adiantou um pouco para dentro. O que viu o fez parar de súbito, deixando-o sem ação.

De lá de dentro os seres tenebrosos se viraram para descobrir o que tinha vindo aos seus domínios.

Lázarus sentiu aquela onda terrível abrasar seu coração e sua alma. Então, tomado de fúria e desespero sacou a espada, o corpo todo tenso. Em total desvario gritou, abalando a própria raiz da montanha e dos montes em volta.

II

Ariel estacou, bem como alguns amigos e inimigos. O som da fúria que chegou até eles era como se o próprio ar e a terra estivessem em profunda dor e desespero.

Ariel sentiu seu peito latejar ao reconhecer o timbre daquela voz. Olhou à volta, o coração batendo desesperado, procurando por Lázarus.

Porém, por mais que os olhos varressem aquele teatro de horror, ele não estava lá.

Tomada de urgência empurrou o dahrar que combatia e partiu para o oeste, o coração pulsando de pânico, imaginando coisas terríveis que poderiam ter acontecido com o seu Lázarus.

Ariel chegou à montanha quase ao mesmo tempo que Ádrio, o grande dragão azul de Corbélia.

Os dois se encontraram e, fazendo uma estreita curva, localizaram a boca da caverna.

Mas, o que viram, quando tocaram a entrada, os deixou sem qualquer reação.

Lázarus estava em pé, o corpo fletido para a frente em direção a uma parede de pedra onde um grupo de uns oito dahrars se amontoavam. As asas de Lázarus estavam dolorosamente esticadas para trás junto com os braços. A espada estava totalmente cinza-chumbo, totalmente riscada por veias brancas iridescentes que pulsavam como o sol, irritadas e maldosas.

As veias de Lázarus estavam intumescidas, todo o corpo dele mostrava os músculos retesados como cordas, ele todo parecendo estar em febre. Os olhos enlouquecidos estavam sobre a turba que, pela primeira vez, ao que Ariel se lembrava, mostravam algum temor.

Ariel avançou o braço, pedindo calma para o dragão, que queria avançar para dentro da entranha da montanha.

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Então Lázarus soltou um grito desesperado e cheio de dor e ódio, o rosto esticado na direção dos dahrars. Subitamente, num piscar de olhos estava sobre três deles, estraçalhando, picando em movimentos rápidos e febris, numa sanha louca e assassina.

Tomados de fúria os outros dahrars gritaram de euforia e se lançaram contra o anjo.

Sem qualquer mínimo sinal de compaixão os dahrars foram despedaçados como um torrão de poeira lançado à frente de um vento forte.

Então ele passou os olhos por Ariel, flutuando na boca da caverna, e ela viu que ele a avaliava, pois que em sua loucura ainda não a reconhecera.

Como que hipnotizada o viu se elevar daquele monte de carne, todo ensanguentado, e tomar a direção da sua esquerda do grande salão da caverna, onde dois seres abobalhados e grandes pareciam adormecidos, completamente apalermados.

O que ela viu a deixou ainda mais perdida e em silêncio.

O viu aplicar as duas mãos sobre eles e, com uma sentida oração, desfazer os dois monstros libertando, além de suas mônadas, muitas outras que os dahrars neles guardavam como se eles fossem recipientes. Uma chuva de luzes se mostrou, paradas, confusas, até que em um movimento incrédulo se foram pelas paredes da montanha.

Como que hipnotizada o viu se elevar e se virar para o centro.

Ali viu dezenas de crianças e animais espalhados no chão num apertado círculo, sendo que alguns estavam mortos, percebeu, mas outros muitos ainda estavam em profunda e lamentosa agonia. Lázarus desceu no meio deles, e com um carinho tão doído os foi puxando para si, abraçando-os em seu colo, sobre eles se dobrando enquanto chorava sentido.

O coração de Ariel se apertou quando o ouviu chorar um pouco mais forte, tomado por um soluço repleto de incredulidade e dor.

Um a um os tomava e envolvia numa plácida luz dourada. Os pequenos gemidos daquelas crianças e dos animais que agonizavam, que agora ela conseguia perceber dentro do turbilhão de seus pensamentos, lentamente iam diminuindo, até que por fim desapareceram.

Um a um ele os tomava e pacificava, sussurrando entre soluços coisas que ela não entendia. Então viu as mônadas se desprendendo daquele que ele abraçava com amor, flutuarem ante seus olhos, pulsarem com intenso carinho e desaparecerem pela parede de rocha.

Quando ele salvou a última mônada os braços e asas desabaram, e Ariel pôde ouvir seu choro aumentar, seu corpo sacudido por um soluço sentido e intenso.

Foi então que o dragão se virou, alerta e poderado, a garganta se inflamando como se um sol amarelo avermelhado ali crescesse. Ariel se virou no exato momento de ver quatro dahrars subindo depressa por uma trilha na face da montanha, os olhos predadores presos nos dois.

Depressa abriu as asas e tombou para o precipício em companhia do dragão.

Na verdade, eram dois grupos de dahrars, um próximo ao outro. O primeiro deles era composto de três e o segundo de dois dahrars.

O dragão atingiu com terrível eficiência o grupo maior, o fogo lambendo e queimando os matos e enegrecendo as pedras. Dois deles foi incinerado no ato enquanto o outro, na passada, Ádrio simplesmente o rasgou, tirando-o da montanha, levando-o espetado em uma de suas garras, que deixou cair para o distante chão. Ariel apenas conferiu que tudo estava bem com o dragão, virando-se para os dahrars, que na trilha a aguardavam.

Tomada de uma fúria incontrolável, as espadas nas mãos, quebrou as costas de um deles, empurrando-o para o precipício ao descer com violência enquanto avançava contra o segundo. Sem dar tempo para ele reagir, levantou-o na ponta da espada. Tomada de prazer o viu morrer. Com um grito de ódio o lançou para longe da montanha, em direção à planície.

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Temendo que Lázarus pudesse ter sido emboscado lançou-se como uma explosão para cima, pousando ao mesmo tempo em que o dragão tocava o solo de pedras, no exato momento em que Lázarus reagia.

Como se em transe o viu se levantar do centro do salão, o corpo voltando a pulsar naquela violência insana, chumbo riscado de veias de branco em fogo, tal como a vintana, que novamente pulsava viva. Como se presa em um pesadelo o viu se virar para o fundo à direita.

Foi então que Ariel os viu: eram em torno de cinco dahrars, e eles estavam hirtos, como se estivessem acorrentados. Vendo os modos deles desconfiou que deviam ser os chefes.

Com um movimento das mãos ela viu Lázarus libertá-los da prisão mental que ele lhes impusera, a espada pulsando de tal forma que se podia ouvir um zunido que crescia e enchia o ar.

Com um grunhido ele avançou para o meio deles, que já o aguardavam, os sorrisos maldosos no rosto.

Em poucos segundos quatro deles estavam destroçados. O último ele empurrou com extrema violência contra as rochas, o braço mantendo-o preso, um pouco abaixo da garganta. Aquele era um dahrar demônio, que não mostrava sinais de se entregar. O dahrar se esforçava em feri-lo com lanças de sombra, que Lázarus ignorava, porque estava envolvido numa proteção que pulsava forte em azul de vários e revoluteantes tons.

A força que usava era tamanha que em dado momento, como se tivesse tido os ossos destruídos, o dahrar simplesmente amoleceu na mão do anjo. Sua respiração estava difícil, mas ainda estava vivo.

Como se tivesse despertado de todo aquele horror Ariel avançou e segurou o braço de Lázarus, que continuava a esmagar a carne do dahrar contra a parede.

Como se em câmara lenta o viu parar, o corpo totalmente tenso, os músculos contraídos ao máximo. Se tudo o que ouvira falar sobre Sênior fosse verdade, ela não sairia viva dali. Mas, o próprio fato dele parar o movimento, como se estivesse avaliando como reagiria e se o que o segurara era ou não uma ameaça, lhe deu esperança de que Lázarus estava ali.

O ódio avançou contra ela quando ele se virou para encará-la.

Mas ela não recuou, nem retirou a mão.

Lentamente ele foi suavizando, o ódio sendo trocado pela dor, e novamente a dor pelo ódio, mas não mais contra ela.

Ela o viu se virar para o dahrar, que lutava para se manter vivo. Com um golpe Lázarus avançou uma das mãos para dentro de seu peito, ao lado do coração. Então, sem tirar os olhos dele, soltou a mão que Ariel segurava com cuidado e penetrou o peito dele, do outro lado do coração. Com um movimento seco rasgou o dahrar ao meio, lançando para longe seus pedaços.

Foi então que viram sombras nas paredes da caverna bloqueando a luz do dia. Ariel se voltou depressa, temendo que mais dahrars tivessem subido a montanha, mas viu Ádrio, parado, a atenção em Lázarus, juntamente com dezenas de pessoas e anjos e dranians. Em silêncio eles estavam ali, parados, tentando entender o que acontecera.

Ariel voltou-se novamente para Lázarus, que observava como que em transe os pequenos corpos esquecidos no centro da caverna.

Sem dar atenção a eles Lázarus se dirigiu para os corpos das crianças e dos bichos. Ao lado de cada um deles se agachava e punha as mãos. Com um cuidado repleto de carinho foi desfazendo cada um deles em luz, o soluço contido escorrendo com cada lágrima que lhe escapava.

III

Ariel olhou à volta para a aldeia, vendo a dor em cada um que os observava. Via o carinho deles, e como sofriam por ver que pouco tinham a oferecer. Ela lhes sorriu, para cada um, em agradecimento às orações que elevavam e aos toques gentis que enviavam para Lázarus.

- Que força maior existe que o amor? – sussurrou para si mesma. – Que força maior há, para acalmar o guerreiro e lhe sussurrar ao ouvido: você não está, nunca esteve e nunca estará sozinho?

Respirou fundo, os olhos pousando em cada amigo ali, bem juntinho, preocupados com o que acontecera com Lázarus.

Ariel sentiu uma paz enorme, apesar da tristeza que as visões que tinha lhe infringiam. Mas, vendo o majestoso Ádrio, parado, o peito estufado, os olhos vigilantes ao lado de Lázarus, a fez sussurrar, tateando uma paz de que tanto necessitava.

A vigilante não sabia o que dizer, tal como Safiel, ao lado, e Sol e Ánacle e FlorDoAr, sentados nas pedras e tocos, os olhos tristes e pensativos. Até mesmo Avenon estava ali, silencioso, comovido com toda aquela dor que um anjo podia demonstrar. Mulo e Valentina estavam em silêncio num banco do outro lado, quase ao lado de Ádrio, os rostos voltados para baixo.

Ariel se aproximou de Lázarus, ajoelhando-se à sua frente.

> Meu amor, eu estou aqui – gemeu preocupada. Sabia o risco que ele tinha corrido, e que ela tinha corrido. Nunca vira uma dor como aquela, nunca vira um ódio como aquele. Já ouvira falar, mas nunca vira. Lá estivera de frente para o Sênior, e ao contrário do que pensara, sentira que confiava nele com todas as suas forças. Tal como Emanoel dissera, naquele dia, era fácil ver a honra e a majestade naquele anjo, por mais bravo e terrível que pudesse ser numa guerra.

- Eles os estavam torturando – ele gemeu, relembrando o que vira. – Eles não permitiam que morressem. Eles os mantinham vivos para extrair de seus corpos e suas consciências tudo o que pudessem. E os torturavam e abusavam vezes sem conta, e se alimentavam de pedaços que retiravam deles enquanto os mantinham vivos. Esfolaram algumas das crianças, e riam e se alimentavam de suas peles enquanto elas choravam – gemeu. - Cada movimento, cada ato pensado apenas para causar dor e terror. E eram todos eles seres inocentes... Tentei tirar a dor delas e colocar em mim, mas elas já estavam machucadas demais...

- Você quase se tornou o guerreiro de antes, o velho e verdadeiro Sênior – Safiel falou por fim, dando de ombros ao ver o ar de repreensão de Ariel. – É verdade!

- Eu sei – Lázarus sussurrou para a floresta ao longe. – Me vi, pequeno grão de poeira dentro de uma montanha, e depois me vi como uma grande montanha com um grão de poeira pulsando dentro de mim. Mas, por mais que tentasse, eu não conseguia ver a montanha e o grão com um só. Por mais que eu tentasse, eles continuavam ali, se mostrando sempre separados – sofreu. – Sei que voltei como Sênior, mas sei também que sou um guerreiro diferente, porque algo bom sempre fica, algo bom sempre permanece ao nosso lado, apesar do horror que podemos ser – falou, os olhos passando com carinho por Ariel. - Então, Sênior não vai retornar, não como antes.

- Pois eu confesso que tive medo do Sênior quando o vi, assim que cheguei na caverna, mas não mais – Ariel confessou. - Se esse que vi era o Sênior, então só posso dizer que está tudo bem, porque a alma que vi é simplesmente.... bonita demais. Sênior ou Lázarus, está tudo bem.

Lázarus suspirou fundo.

Então ele levantou os olhos inchados e doloridos, pondo-os carinhosamente em Ariel, e depois em seus amigos.

- Sou muito grato a vocês – sorriu triste. – Vocês me lembram o que não quero mais ser.

Por fim pousou os olhos novamente nos olhos de Ariel, onde permaneceram.

> Obrigado... – gemeu baixinho.

- E por que, meu bem?

- Por me ter salvado, de novo...

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