《MEMÓRIAS DE UM DEUS - Ficção [português]》SACRIFÍCIO

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Eu tinha que tentar. É a minha contribuição para esse mundo.

I

- Solte-o agora! – ordenou a vigilante, as asas abertas, o ódio controlado em sua voz.

O ser de sombras olhou os três, e viu quando a humana, com uma suavidade tocante, segurou os braços armados dos dois, do dahrar anaquera e da vigilante.

Eles ficaram fixos no juguena. A neblina espessa se revolveu suave enquanto, com muito cuidado, pranchas largas de sombras avançaram levando o anjo para frente, depositando-o com muito cuidado no chão à frente deles.

Ariel, apesar de todo seu temor por Lázarus, viu os olhos vermelhos da criatura, desconfiando de que algo estava estranho ali. Devagar cresceu a consciência em sua direção.

Com tranquilidade guardou as espadas.

- Está tudo bem, meus amigos. Este é o verdadeiro Mulo, o nosso amigo – falou enquanto se agachava ao lado de Lázarus, a dor explodindo em seu peito. – Seu louco, seu maldito louco – chorou, tomando Lázarus em seus braços e apertando-o contra si, as asas trêmulas de dor envolvendo os dois.

- Se poderem e vão para o Sul. Na ponta extrema das montanhas de Jade verão Par Adenai. Estaremos lá – sussurrou tomada de dor.

Então, com muita suavidade, se alçou no ar, levando o anjo consigo.

Valentina correu para o ser das sombras que se recolhiam com lentidão, doloridas pelo amigo, enquanto Avenon observava tudo com estupefação, tentando avaliar o que realmente havia acontecido ali.

- Precisamos ir depressa – falou Valentina tomada de urgência. Nem bem terminara de falar se viu envolta em neblina, a paisagem zunindo como um borrão ao seu lado, enquanto via um ser como um enorme e belo animal correndo veloz ao seu lado.

II

Assim que desceu, Ariel logo o deitou no leito que improvisou no salão, visto que ali teria que ser, o que se mostrou acertado quando vários dragões foram descendo para velar pelo vigilante.

- Como ele está? – perguntou Avenon, que chegou pouco tempo depois dela. Logo se apresentaram Mulo e uma confusa e descabelada Valentina, que depressa se restabeleceu, apesar de ainda mostrar as faces lívidas, fruto do espanto da velocidade que tivera que suportar. Em todos eles era fácil ver a preocupação pelo amigo.

- Ele está reagindo – falou Ariel, tentando tranquilizá-los, olhos postos no rosto que tanto amava. – Já apliquei muitos passes, e nossos amigos aqui já energizaram todo o ar para ele – contou, se referindo aos dragões.

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Ariel suspirou profundamente, os olhos passando pelos rostos preocupados de todos os que estavam ali. Agora que controlava sua dor um pouco mais conseguiu ver a dor deles, e não pode deixar de sorrir agradecida.

> Vocês não têm qualquer culpa pelo estado dele – falou se voltando para os rostos preocupados e cheios de culpa de Avenon e Mulo. - Ele escolheu isso, e não só por vocês. Agora, gostaria que me contassem o que realmente aconteceu. Eu desconfio, mas nunca vi nada assim.

- Eu nunca tinha visto ou estado naquele lugar – começou Avenon, a voz parecendo cansada e distante, deixando-se cair no chão brilhante. – Era o alto de uma montanha, uma montanha muito, muito alta. Havia neve por toda à volta com exceção dum lugar, onde havia muitas flores, azuis, eu acho...

Ariel não conseguiu não sorrir ao ouvir como Lázarus colocara aquele toque especial no que queria. Então balançou a cabeça, voltando sua atenção para o que Avenon contava.

> ... Ele não disse nada quando chegamos lá. Ele apenas tocou na minha testa. Quando ele fez isso uma escuridão saltou de mim e se afundou nele com uma rapidez apavorante. Mas, não era nele, era em mim também... – falou, a voz mostrando toda a estranheza da experiência. – Ele e eu éramos um, e havia aquela escuridão, e ela queria se bater conosco. Eu não entendo, foi tudo muito rápido. Era como se conversássemos com ela, que agora se mostrava como uma criança. E ela nos agredia e nos batia. Então, parece que em um momento ela caiu e começou a chorar, e estávamos lá, ao lado dela, e eu vi que eu era ela. Ela estava com muito medo, e tinha uma solidão tão grande que me deixou assustado. Ela sofria demais, e tinha raiva demais por achar que sempre estaria assim, e que ninguém se importava com ela. Acho que nunca tive tanta pena, e amor, por alguém. Eu, ele, só queríamos que ela estivesse bem, e dissemos isso para ela, e cuidamos dela. O tempo foi muito longo lá, a gente cuidando dela. Não sei ao certo quanto tempo foi, mas foi muito longo, até ela conseguir ficar em paz e... e sorrir. Ela sorriu... – falou expandindo um enorme sorriso, como se lembrasse de algo e isso o deixasse muito feliz. - Ah, para falar a verdade, não entendo bem o que aconteceu, mas... mas... A verdade é que estou em paz comigo. Eu não vejo mais a escuridão como o mal em mim, mas como uma parte minha pela qual aprendi a ter um enorme carinho e... cuidado. Sei que minha parte escura está em... paz, está fora da solidão. Acho que é isso...

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Ariel suspirou, os olhos passando pelo anjo ainda desmaiado, que respirava lentamente no leito macio de panos coloridos que haviam providenciado.

- Esse louco... Ele não devia ter chegado tão longe – falou, tomada de dor. – Avenon, ele chamou seus medos e os tratou como uma criança assustada, e vocês a confortaram e lhe disseram que estavam ali por ela – falou, as lágrimas descendo por seus olhos.

- Mas, eu não senti o medo e o horror que eu sentia antes, quer dizer, não com toda a força que eu sentia antes e...

Avenon parou um momento, os olhos pousando depressa no anjo.

- Ele aguentou a maior carga, é isso?

Vendo a dor abandonada no rosto da vigilante Avenon deixou os braços e os ombros caírem, tomando consciência do enorme esforço que o anjo havia feito. Então, assustado, virou os olhos para Mulo, e viu que ele também percebera o quanto Lázarus se arriscara por eles, principalmente por ele, que trazia uma enorme carga de escuridão.

- Agora entendo... Mais tarde quero ouvir sua estória, Mulo. Confesso que estou com medo – reconheceu apavorada. - Por agora, venham, precisamos trazê-lo de volta, porque ele está perdido num mundo escuro, e ele está tentando voltar – chamou Ariel se levantando depressa e caindo de joelhos ao lado de Lázarus. Respirou fundo e, em paz, postou os braços e as asas sobre ele, emanando uma luz suave com que o cobriu.

Os outros se aproximaram apressados e estenderam as mãos, enviando tudo de bom que podiam para o anjo.

Também se uniram alguns dragões, fazendo um enorme guarda-chuvas sobre eles, desejando que o anjo se restabelecesse rapidamente.

Estavam assim, em silêncio, quando Safiel e um outro anjo desceram. Em silêncio os sentiram caminhando até eles. Com cuidado passaram sob as asas dos dragões e se ajeitaram ao lado de Ariel. Devagar, como um canto entoado, também estenderam as asas e os braços, emanando uma luz suave, gentil e pulsante sobre o AsaCortada.

Ariel sentiu algo, ao longe, e sorriu feliz, vendo uma menininha se ajoelhar na frente de uma cabana, toda tomada de brasa, ao lado do pai e da mãe que chamara. E também viu que todos da aldeia, mesmo sem entender o que estava acontecendo, estenderam sua energia para a pequena Sol, que recolhia as luzes e enviava até ela, que deixava com cuidado sobre Lázarus. E sentiu um outro pulso, na cidade azul, e suspirou aliviada, porque sabia que tudo ia dar certo.

Nunca pensara que um ato, como um amor tão desinteressado, pudesse se espalhar com tal energia e ter força suficiente para mudar e acalentar tantas almas quanto tocasse. E, para sua surpresa, em cavernas profundas viram dêmonas e demônios cinzas, timidamente, se mostrando e, em paz, orando por um anjo desconhecido.

Então, quando sentiram um pulso de energia mais forte no anjo caído, como se ele tivesse encontrado o caminho para casa, todos foram se recolhendo, voltando. Quando abriram os olhos deram com Lázarus desperto, mesmo que ainda deitado e mostrando sinais de intensa fraqueza.

Havia um cansaço imenso nele, quando se ergueu e se sentou com dificuldade.

Ariel não pôde se segurar quando Mulo e Avenon se aproximaram dele e se ajoelharam na sua frente, ficando apenas ali, quietos, perdidos num abraço sem qualquer palavra.

Ariel olhou agradecida para Safiel e o outro anjo, que sorriam satisfeitos.

- Cuide bem desse louco, desse AsaLonga, desse AsaCortada... – falou com carinho. – Acho que aprendemos algo sobre esperança aqui. A luz e a radiação do amor que demonstrou se espalhou pelos campos, cavernas e montanhas, e além dos mares e para dentro deles, e a muitos tocou, anjos ou demônios, pessoas ou homens e toda a consciência. Gaia sentiu... – falou se erguendo lentamente e desaparecendo com muita lentidão além das grossas nuvens brancas, acompanhado pelo outro anjo que, como ele, iam como se estivessem pensando muito sobre o que haviam visto ali.

- Realmente, ele foi um louco, não foi? – perguntou Valentina abraçando-se fortemente nela.

Ariel balançou a cabeça, incrédula, uma repreensão gentil e amável para os olhos do anjo que a observavam satisfeitos e aliviados dentro do abraço dos amigos.

Sorriu quando ele fechou novamente os olhos, adormecendo outra vez. Viu os amigos, deixando com imensa suavidade seu corpo sobre a cama, onde ficaram velando, junto com os dragões.

Então, se estendeu com suavidade até uma aldeia ali perto, e para cavernas sombrias agora mais suavizadas e sobre um castelo ao longe, deixando sobre eles uma onda de agradecimento.

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