《MEMÓRIAS DE UM DEUS - Ficção [português]》CASTIEL

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Como se pode curar uma alma tão destroçada, mesmo que tão nobre?

I

Avenon o observou, a expectativa estampada no rosto.

- E então, o que viu? Isso é, viu alguma coisa?

- Vi sim, meu amigo. Você é da minha família.

Ariel viu como Avenon se mostrou feliz, mas escondeu para si a desconfiança sobre a reação que Lázarus tão bem acreditara ter ocultado.

- E que tal me falar sobre a família, nossa família, toda a família? – perguntou, sentando-se no chão, ao lado da lança.

Lázarus sorriu, ensimesmado, os pensamentos rolando para outros lugares e tempos. Ariel se ajeitou ao lado de Lázarus, sentado no chão, as costas num pequeno barranco ao lado da trilha.

- Éramos muitos, contados aos milhões de milhões – falou, o pensamento distante, acariciando a cabeça de Shen, que se ajeitara ao seu lado, lentamente avaliando o que poderia contar que não atrapalhasse a missão que Castiel se dera. – Quando a escuridão surgiu, trazida pelos demônios que se fizeram a partir dos anjos que éramos, minha família, dentre algumas outras, escolhemos combatê-la. A luta foi extremamente dura porque, no início, éramos puros e inocentes; nós não sabíamos guerrear. Nossa família foi muito diminuída, por receio do que estava reservado para nos tornarmos ou pelo que escolhemos enfrentar. De muitos milhões em poucos milhões – rememorou. – A partir de um momento, quando estávamos com um número perigosamente reduzido frente ao que éramos e ao que nos propúnhamos, nos perguntamos e começamos a duvidar do futuro, mas resolvemos continuar. No tempo que se seguiu diminuímos ainda mais, até que, ao final de tudo, ficamos apenas treze.

- E eu estou onde?

- Você era um de nós...

Avenon ficou em silêncio, voltado para dentro de si mesmo.

- Não, não senti nada por essa estória – riu.

- Isso é bom, meu amigo, porque foi para isto que veio – Lázarus explicou.

- E os outros? Todos desceram aqui?

- Não, a grande maioria foi para outros sistemas, outros planetas, outras dimensões. Poucos quiseram continuar aqui, ou poucos continuam aqui. Muitos se foram, muitos para lugares não tão densos quanto aqui. Outros muitos resolveram encarnar... É a forma que escolheram para ajudar Urântia. A energia estava baixando muito rapidamente...

- E como encarnados nós poderíamos aumentar a vibração, transformando a experiência de dentro para fora, foi isso? – falou Avenon, como se estivesse se lembrando de algo, o que realmente parecia ser o caso. – É, isso me veio claramente à mente – explicou, vendo o olhar de interrogação de Ariel. – Principalmente dos últimos treze...

– E quanto aos outros treze, onze, quero dizer, porque Avenon e você estão aqui, sabe alguma coisa deles? Sabe dos outros? – perguntou Ariel para Lázarus. - Fora os três que já encontrou?

- Três? Como assim? – interessou-se Avenon, se remexendo feliz.

- Os últimos treze... Nos chamamos de UmDosIrmãos, e éramos em treze. Todos se foram. Alguns desceram, outros se foram para outros lugares, menos eu. Há algum tempo senti um pedido de ajuda, e conseguimos resgatar três deles das mãos dos demônios - contou.

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Ariel passou os olhos por Lázarus, entendendo o que o motivava a passar muito rapidamente pelas estórias dos ganedrais e dos UmDosIrmãos. Afinal, não fora para se esquecer de tudo isso que Castiel descera?

- Certo. Mas, e quanto aos outros??? – Avenon quis saber, pouca importância dando a estória dos UmDosIrmãos.

- O que eu disse é a expressão da verdade - repetiu. - Muitos deles cortaram a ligação comigo, como você mesmo fez.

- Mas, eu entendo, mas... Por que não querem contato com você?

- Apenas decisão, Avenon. Vivemos eons juntos. Eles precisam de um tempo para eles, sem qualquer influência. Alguns deles se mostraram muito arredios quando os procurei, e entendi que querem que eu me mantenha longe. O maior tempo que estivemos juntos foram em batalhas duras e sangrentas, e muitas vezes não muito honradas. Ainda, tem que perceber que alguns deles podem ter caído tanto que acabaram até mesmo se desligando. Apenas aceite que desejam esquecer isso, por enquanto, e aceite também que é quase certo que, em algum momento futuro, você também desejara isso, novamente.

- Esse último caso parece ser o caso de Beliel – lembrou Ariel. – Ele também foi da família, mas não dos umdosirmãos – Ariel explicou para Avenon.

- Eu ouvi sobre isso, sobre essa batalha. Tentei entrar nela, mas não deu – ele falou, o corpo tomado de movimentos febris e encantados.

- Sim, Beliel era da família – confirmou Lázarus, a mente distante e triste.

- Então agora me diga, Lázarus, como você conseguiu me encontrar?

- Sabem, a grande maioria, quando deseja descer, sabe que irá viver inúmeras vidas aqui, nas mais diferentes formas, gêneros e espécies. Então, em pontos estratégicos, em vidas escolhidas, coloca marcadores, que pode ser um olhar, uma fala, uma folha que cai de uma árvore, um encontro, qualquer coisa, algo que os fará se lembrar de algo que lhes apontará o caminho a seguir, ou lhes afirmará que estarão no caminho. Talvez, no seu caso, eu seja um marcador – falou, olhando diretamente para Avenon. - Um dia senti um pulso de energia que chamou a minha atenção, e me fez desejar saber quem o emitia. Por isso, por tudo isso, tem-se que respeitar os desejos manifestados, as escolhas realizadas.

- E algum deles pode resolver não colocar qualquer marcador?

Lázarus sondou Avenon e suspirou pesaroso.

- Sim, isso pode acontecer, Avenon. Acho temerário, muito arriscado. Esse mundo é, se não o único, o mais pesado de que se ouviu falar. Se esse anjo resolver cair sem qualquer marcador, sua experiência será muito, muito mais intensa. Então, ele poderá evoluir muito depressa ou... se perder, por um tempo muito longo. No entanto, ao final apenas fica isso: escolhas!

- E o que acontece agora? – quis saber Avenon.

- Para onde estava indo? – perguntou Ariel.

- É fácil ver que uma guerra está para acontecer.

- Vai tentar evitá-la ou...

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- Evitá-la, Lázarus? Nunca! Sou guerreiro, nasci guerreiro.

- E sabe em qual lado vai lutar? – Ariel perguntou, curiosa sobre o que movia o nefelin.

- Se houver honra nos humanos, é ao lado deles que estarei. E vocês?

- Onde houver honra – declarou Lázarus.

- E se houver nos dois lados?

- Como quase sempre acontece – sorriu Ariel, compassiva.

- Então, estarei batalhando nos dois lados – sorriu Lázarus por sua vez, deitando a cabeça sobre a cabeça do dragão, que ressoou feliz.

II

Ariel não conseguiu mais se segurar. Já fazia quase um dia completo que Avenon havia partido, e Lázarus ainda mantinha algo oculto dela, algo que parecia ser algo doloroso. Esperava que ele repartisse a carga por vontade própria, mas...

- Está bem, me conte – falou, a voz séria, não admitindo qualquer tipo de fuga ou desconversa, diminuindo um pouco a velocidade do voo.

Lázarus sondou seu rosto, e viu ali determinação em saber a verdade. Sorriu. Conhecia Ariel muito bem para saber que ela não desistiria. Por fim, aceitou capitular.

- O que quer saber?

- Ora, o que escondeu de Castiel, Avenon - corrigiu, - e de mim?

Lázarus suspirou forte, descendo sobre o topo pedregoso de uma montanha. Havia um forte vento ali, que parecia acalentar sua alma. Sentiu-se renovado, vendo a crista fria rodeando o pico, esticando-se como uma grinalda diáfana e vaporosa.

- Ele, realmente é Castiel, e eu vi que ele escolheu não ser encontrado, por um tempo longo demais. Você viu a alma dele. Ele gosta de se jogar em aventuras - sorriu.

- Realmente, ele parece ser assim – concordou. - Mas ele acabou se mostrando.

- Ele me colocou como marcador. Ele pediu para ser encontrado por mim – revelou.

- Ora, e por que ele faria isso? Pode me dizer, Lázarus – tentou tranquiliza-lo, vendo uma neblina suave de dor no rosto dele. Devia ser algo muito forte e doloroso, entendeu.

- Ajuda, não para ele, mas para outra pessoa. Sabe, quando o sondei vi que ele encontrou alguém de nossa família encarnada como uma pessoa, uma sedenerá. Não era dos treze últimos, mas de quando éramos milhões – esclareceu. - Eles eram muito unidos. Depois de tudo o que passamos ele resolveu descer, e acabou encontrando-a. Mas ela tinha descido muito e estava esquecida de muita coisa. Ela estava amarga e escura. Enfim, como ele ainda tinha muitas lembranças antigas, ela viu o carinho que ele tinha para com ela como fraqueza e o envolveu. Ele lhe contou muito de sua estória, e contou sobre mim. Por temor de que alguém o tirasse de sua influência ela insistiu com ele que estariam melhor fora das minhas vistas. Então, atendendo e acreditando nas orientações dela, ele se ocultou, e assim se manteve longe por muito tempo.

Ariel notou um imenso cumulonimbus bem ao longe, majestoso, vagando no ar como uma imensa cordilheira. Desejou-lhe boa jornada, aguardando que Lázarus retomasse a narrativa.

> Assim que ela percebeu que eu respeitava a decisão dele, ela chamou seus irmãos e o prenderam. Ele foi dominado e aprisionado, e foi duramente torturado por um tempo longo demais. E ele morreu sob tortura.

- Isso faz muito tempo?

- Alguns anos...

- E ela ainda está viva, Lázarus?

- Sim, ela ainda continua viva.

- Avenon sabe dela, no nível consciente?

Ariel viu a face de Lázarus se alterar um pouco, tal como sua aura, que se tomou de um vermelho muito sútil, quase disfarçado.

- Não, ele escolheu se esquecer dela e de tudo o mais. Ao reencarnar ele preferiu esquecer mais profundamente, tal a marca que a tortura lhe passara. Mas, se deu poderes nesse novo ser que escolheu encarnar, para o caso dela o encontrar novamente.

- E por que ela fez isso? Você não disse que eles eram muito próximos?

- Dor, Ariel... Ela tinha saudades demais de algo que não conseguia entender, e quando ela se encontrou com ele, eu acho que ela pensou que ele poderia ser algo enviado contra ela, porque a saudade que sentia havia aumentado ainda mais. Ela estava presa na escuridão muito densa, Ariel. Ela... ela não sabia o que estava fazendo.

- Então por isso ele falou que lutaria ao lado dos homens.

- Parece ser esse o caso.

- Então, meu querido AsaCortda, deve se lembrar de que essa sedenerá não era só irmã dele, mas sua também.

- Eu sei... E acho que sei onde ela está...

- O que pretende fazer?

- Preciso saber como ela está, preciso saber o que ela se tornou.

- Estranho isso, não é mesmo, Lázarus? – falou Ariel, bem lentamente, como se quisesse que ele seguisse seus pensamentos. – Sempre nos julgamos responsáveis por alguém da família, por alguém com quem compartilhamos parte da nossa estrada. Isso pode nos colocar numa posição um tanto... perigosa, é verdade, mesmo que desejemos que seja assim. Contudo, até mesmo o ser mais escuro, para com o qual julgamos que não temos responsabilidade, é nosso irmão, é nossa família. E, se são colocados em nosso caminho, deve haver algum motivo para isso. De alguma forma é como um lembrete de que nos apoiamos, mesmo que, definitivamente, assim não se pareça.

- Foi isso, minha querida Ariel, que foi usado contra Castiel.

- Ah, Lázarus, que bom que sabe disso. Muitas vezes os nossos entes queridos não têm o plano todo, e mesmo que os lembremos, não conseguirão ver. Se proteja, e esteja ciente de que essa vida é apenas uma passagem, uma experiência que a centelha julga necessária.

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