《MEMÓRIAS DE UM DEUS - Ficção [português]》UMA VERDADE OCULTA

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Talvez eu sempre soubesse. Mas, não era importante prestar muita atenção nisso.

Ela estava quieta na clareira, no meio daquela gigantesca floresta. Havia aquela destruição toda à volta, com todos aqueles corpos arrasados jogados à esmo por ali.

Em silêncio Lázarus desceu ao seu lado, os olhos passando por toda aquela destruição.

Ainda em silêncio virou o rosto para ela. Ela estava muito machucada. Havia um corte profundo em seu braço esquerdo, nas costas, ombro e em seu lado direito. Da perna fluía sangue de duas feridas de espada, e a testa mostrava um corte raso. Mas, os olhos estavam lá, negros como contas, duros e determinados.

- Não fosse pela refrega aqui diria que você está com um aspecto bem melhor. Então, devo entender que aprendeu a se alimentar melhor – sorriu.

- Ah, sim, aprendi sim. Mas, devo dizer que seu aspecto não melhorou em quase nada – sorriu debochada, que ele ignorou com um sorriso amigável.

- Ora, agora vejo que uma das espadas é nova. Posso ver?

Ariel a observou curiosa. Após ficar em dúvida por alguns segundos, finalmente a sacou e a estendeu para o AsaLonga.

Lázarus a segurou com muito cuidado e respeito, examinando a bela espada de esmeralda com os veios em dourado.

- Linda – exprimiu por fim, os olhos procurando a outra, às costas da vigilantes que, percebendo seu interesse, a sacou e a mostrou, deitada nas suas duas mãos.

- Essa é a minha original – falou da espada de lâmina amarela com os veios arabescados em dourado. – E essa que você está segurando eu ganhei de uma amiga, que resolveu que iria descer na experiência.

- Entendo. Uma decisão de muito carinho e respeito de sua amiga... E essa já está quase em sua energia – falou se referindo ao dourado do arabesco que rendilhava pela sangria. - O dourado dessa aqui ainda não é tão forte quanto a sua original – notou. – Mas, logo a energia dela e a sua estarão harmonizadas. Sem dúvida um belo presente – congratulou, esticando-a de volta para Ariel, que com um sorriso a tomou, rapidamente guardando as duas nas bainhas. – E quais os nomes delas?

- Nardária... – falou. – Quanto à nova espada, ainda não tenho um para ela, porque ela ainda não se reconheceu num combate – esclareceu.

- Logo ela vai se mostrar, ainda mais pela vida que leva - sorriu, olhando à volta. Uma luta e tanto, essa que teve aqui - reconheceu. - O que aconteceu aqui?

- Esses idiotas estavam me caçando...

Lázarus segurou o sorriso. Era óbvio que ela ainda não confiava nele.

- E por que eles estavam te caçando?

A vigilante olhou para ele, a estranheza no rosto.

- E por que quer saber, AsaLonga?

- Curiosidade... Além disso, te devo uma...

- É, realmente me deve. Então está me seguindo para pagar sua dívida?

- Não é um bom motivo?

- Então, vai continuar me devendo, AsaLonga. Isso aqui foi algo sem importância.

- Não ligo se as coisas são sem importância. Manda! O que aconteceu para eles te caçarem?

- Apenas protegendo uma família – falou. – Agora me diga: por que veio atrás de mim?

- Ah, apenas para te fazer uma pergunta, depois – falou se postando ao seu lado, aplicando energia em um ferimento grande no ombro, abaixo da correia de uma das espadas, que ela aceitou de bom grado, enquanto curava uma ferida dolorosa em seu lado. - Por ora, estou interessado. Família? Sua família? Não sabia que ela estava por aqui...

Ele sentiu o pulso da dor. A viu baixar o rosto, a dor flutuando à sua volta enquanto a ferida que ela cuidara terminava de se fechar. Por fim viu o alívio tomar sua face.

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- Eu... Uma amiga desceu há algum tempo, uma demiana. Ela também caiu. Ela sempre teve uma clareza invejável de alma, uma alegria tocante. Ela se jogou em uma aventura, como gostava de fazer. Ela disse que iria se encarnar em uma manira-ellos, mas eu a encontrei – contou com um sorriso, - como uma pequena flor-do-fogo.

- Eu os encontrei – Lázarus revelou, reconhecendo os sinais do encontro com o grupo de pessoas. – O pai me pediu para te dizer que vão cuidar bem da sua amiguinha. Eu vi que eles foram duramente atacados. Deve ter sido incrível ver aqueles dois lutando.

Lázarus viu um sorriso bailar no rosto da vigilante, e sorriu também.

- É, foi sim, foi de uma beleza mágica – falou.

- Eles estavam bem. Não havia nada que os perseguisse. Eles estavam indo na direção leste, para Canvas. Lá é um grande povoado, com muitos seres de grande poder. Tenho certeza de que lá eles estarão protegidos – tranquilizou.

- Que bom – suspirou ela aliviada. – Eu conheço Canvas. Lá é um realmente um bom local. São dias estranhos esses. Os caídos querem degradar as pessoas e os homens. E alguns anjos também se juntam a eles nesse empreendimento. Alguns caídos e anjos arrasaram a aldeia deles, e com algumas mulheres se deitaram. As menores foram raptadas, para serem doutrinadas. Aprisionaram muitos deles. Essa e outras famílias conseguiram fugir, mas foram perseguidos. Muitos morreram, anjos e pessoas.

- Esses são os anjos?

- Não, esses são os caídos. Os anjos eu matei algumas léguas atrás, no oeste...

- Ora, então não eram eles que te caçavam, como você disse – sorriu.

- Bem, era uma caçada, de qualquer jeito – ela sorriu também.

A vigilante o observou, um sorriso cansando no rosto.

- E os que estavam aprisionados?

- Por que pergunta? Vai libertá-los? – perguntou com secura.

- Nenhum ser tem o direito de se erguer sobre outro para submete-lo – ele sussurrou.

Ariel suspirou, se sentindo melhor ali, em companhia daquele anjo.

- Não precisa se preocupar. Os que estavam presos foram todos libertados – ela tranquilizou com a voz bem mais suave.

- Que bom, que bom...

- Este era um mundo belíssimo, esse aqui. Como foi ficar assim, tão tenebroso? – sofreu.

- Acho que todos nós temos grande culpa nisso. Quisemos tomar as decisões. Nos arvoramos em justiceiros e vingadores. Não sei... Apenas reagimos? – pensou como que para si mesmo. – Há muita dor e mágoa... Mas, é essa a linha de tempo que segue, que foi construída. Sabe, tenho certeza de que tem o dedo do UM no meio disso – sorriu.

Ariel o olhou satisfeita.

Esticou as asas, que examinou, curando as feridas que viu, sendo de pronto auxiliada por Lázarus. Ao ver que estava tudo bem com elas, as fechou novamente às costas.

Lázarus deu um passe na testa, enquanto ela curava as feridas na perna.

Refeita e aliviada da dor lentamente caminhou até um caído, que virou para ver o rosto.

Devagar apoiou um joelho no chão, entre as mãos. Com um impulso no solo fez um som cavo correr por toda a extensão da clareira. Como se fosse resultado de um impacto os corpos foram empurrados alguns poucos centímetros para cima. Quando desceram secamente eles simplesmente sumiram nas entranhas da terra.

Tudo agora estava em paz, nada mostrando que ali havia acontecido uma batalha.

- O que o preocupa, AsaLonga? – perguntou se voltando para o anjo, que observou que o corpo dela estava sendo rapidamente revigorado. Meio sem-graça ficou se perguntando se não devia arrumar sua armadura e fazer sumir todas as cicatrizes que tinha.

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- Você disse, da última vez: enquanto for AsaLonga. Por que disse isso?

Ariel o encarou em silêncio, seus olhos negros vasculhando todas as linhas do seu rosto.

- Entendo... Você simplesmente decidiu que iria descer, e pronto. Foi isso mesmo?

- Foi... Na verdade, foi logo no princípio, bem antes dos homens e até mesmo das pessoas. Se eu não fui o primeiro a descer aqui, fui um dos primeiros. Quer dizer, minha família foi uma das primeiras. Nos aproximamos, nos maravilhamos com Urântia, e por amor a ajudamos a fazer este lugar. Os escuros vieram depois...

- Sim, os escuros... Vocês os combateram?

- Até na última batalha, que aconteceu aqui...

Ariel o observou, pensativa.

- Há muitas e muitas estórias sobre um grupo de anjos guerreiros, que foi lentamente desaparecendo...

- Os ganedrais... – Lázarus sussurrou, a interrompendo.

- Sim, esses mesmos. Por um acaso, você é um deles? – perguntou, a atenção ao máximo.

- Sim, sou um deles. Talvez, o último deles – falou, a voz pesada e abatida.

- Pelo Trovão! – surpreendeu-se ela totalmente maravilhada, os olhos brilhantes presos nele. – Ouvi muitas estórias de vocês. Estórias incríveis. Você é mesmo um deles?

- Sim! – confessou, o jeito demonstrando que estava desconfortável com a atenção dela sobre o assunto.

- Ah, por isso alguns tem tanto ódio de vocês... .

- Como? Não entendo – espantou-se, quase se engasgando. – Nós lutamos contra a escuridão e...

- Mas, é isso que se ouve por aí, ou se ouvia, pelo menos, no meio dos anjos. Sabe, você devia estar muito concentrado nas guerras para não ter visto isso. Vocês eram guerreiros muito temidos, muito experimentados nas guerras. E muitos de vocês caíram, alguns até mesmo sendo confundidos com demônios, não foi?

- Sim, alguns caíram. A dor e a desesperança para eles estavam insuportáveis...

- Se vocês como guerreiros já eram temidos, como seriam vistos os demônios que muitos de vocês se tornaram?

- Caçamos quase todos eles – declarou, a voz tomada de uma dor fina e penetrante.

- E foi isso o que os redimiu aos olhos dos anjos, Lázarus. Os UmDosIrmãos, os últimos ganedrais, sempre foram bem vistos pelos anjos.

- Acho que não, vigilante. Nunca nos sentimos bem-vindos em qualquer lugar – contestou.

- Você não sabe, Lázarus, mas muitos anjos embalavam na alma o desejo de se juntar a vocês. Mas, os caminhos tomaram outra direção, e tudo acabou ruindo. Eu sei disso porque eu fui um desses – gemeu com um sorriso pendurado no rosto.

Lázarus ficou em silêncio, os pensamentos se remoendo.

- Essa experiência parece ser bem maior do que pensávamos – suspirou. – Sabe, é muito estranho como a verdade se mascara e se perde. Lendas, magia, ignorância, tudo parecendo se enovelar e se enrodilhar de forma muito estranha. Fomos criados e criamos, formos surrados e surramos, fomos acusados e acusamos, estendemos a mão inúmeras vezes e aceitamos as mãos que nos estendiam inúmeras outras. Versões, formas de se contar e ouvir. Ao final, vigilante, eram experiências que deveriam ser apenas...

- Vistas como tal... – completou a vigilante. – Sempre nos perguntávamos, eu e os da minha família, porque ninguém corria até vocês e cuidava de vocês, ou ao menos engrossava suas fileiras ou vinham até vocês só para dizerem: ei, está tudo bem. Vocês nunca vão estar sós. Eu não entendia porque foram abandonados. Eu julgava que era pela forma totalmente entregue com que se jogavam numa guerra mas, sentindo a sua alma, acho que há alguma outra coisa. Talvez tenha sido pelo amor que devotaram a esse planeta, talvez porque vendo isso eles temiam que a atenção do UM fosse chamada pela beleza do que aqui acontecia, da beleza e originalidade que era Urântia. Como pudemos esquecer que tudo é o UM, e que Ele próprio é a experiência? – sofreu.

- Como sempre, as escolhas, vigilante. Bem, mas e quanto ao que disse...

- Os primeiros AsasLongas, Lázarus, não existem mais. Há muito tempo, acho que logo que os homens surgiram. Vocês, os UmDosIrmãos, foram os últimos AsasLongas que desceram aqui. Mas ficaram tempo demais, e se adensaram muito. Sinto por vocês, sinto por você...

- Também sinto, Ariel – falou, a voz distante, meio perdida ao longe, sem que qualquer eco lhe dissesse que estava tudo bem. –Mas, como explicar então que ainda há anjos que descem por escolha própria? Não são AsasLongas? Conheci alguns deles.

- Sim, esses poderiam atender por esse nome, isso é, se eles ainda tivessem a condição de serem imortais.

Lázarus a examinou em silêncio por um tempo razoável, que ela manteve, dando-lhe tempo para assimilar todas aquelas informações. Vendo que ele voltava a encará-la, Ariel suspirou, o coração um pouco pesado.

> Você, Lázarus, talvez tenha sido o último que poderia ter sido chamado assim, como os antigos AsasLongas. Mas, agora não mais. Os AsasLongas se foram, há muito tempo...

- Ora, então eu... Isso quer dizer que não existem mais AsasLongas? – perguntou tomado de confusão.

- Já tentou subir, depois que desceu?

- Muitos da minha família já subiram e se foram...

- Há quanto tempo isso aconteceu, Lázarus?

Lázarus ficou pensando e viu, com receio, que fora há muito tempo atrás, um tempo longo demais que o último se fora do planeta.

- Você está querendo dizer que eu sou um caído, é isso?

- É o que dizem, Lázarus – a vigilante sussurrou.

Lázarus sorriu, o pensamento longe. Se aquilo nunca o incomodara antes, por que deveria incomodar agora?

- Interessante – sussurrou por sua vez. – Um caído? Será?

Sem que Ariel tivesse percebido a intensão de Lázarus, num movimento súbito ele se empurrou contra o firmamento, cada vez mais veloz, cada vez mais poderoso.

O impacto quase o desmontou. A dor o atingiu de uma forma absurda. Havia como que uma muralha que o impedia de ir além, uma muralha de energia terrível.

Foi despencando quase desfalecido. Mas, ao se recobrar fez uma curva acentuada no céu e voltou a subir, agora tomado de ira e furor.

O impacto foi ainda mais doloroso, e não teve como não gemer.

Surpreso olhou seu corpo, vendo que o sangue parecia ter se espalhado por todo ele.

Então algo se iluminou dentro dele.

Tomado de poder, ignorando toda a dor que se irradiava dentro dele, subiu para a quarta dimensão e tentou assaltar o céu por lá, e a dor foi ainda pior. Ainda mais horrorizado ficou quando se mostrou incapaz de subir além da quarta dimensão.

Cheio de dores voltou para a terceira dimensão e desceu ao solo, sobre uma montanha. Pensativo ficou perdido no alto, se perguntando como não percebera que havia se adensado tanto, a tal ponto que não viu quando abrira mão do céu.

Então ficou se lembrando de pequenas coisas, dele e dos seus, e viu que nunca haviam tentado ir além da quarta dimensão ou tentado, conscientemente, voltar para casa, como se a casa estivesse lá no céu. Mas, agora ficava se perguntando, a pequena voz ressoando dentro de sua alma, se a casa não estaria dentro de seu coração, e eles já tivessem aceitado isso há muito tempo.

- Coração – suspirou abatido. Em que momento haviam aceitado algo oculto?

Inspirou fundo e demorado quando a vigilante desceu em silêncio ao seu lado, os olhos negros perdidos no céu.

Foi então que os viu, flutuando leves, logo abaixo das nuvens, observando-o com carinho.

Levantou a mão, cumprimentando Safiel, que soube que lhe sorriu amistoso de lá, bem como sentia as faces comovidas dos anjos que o acompanhavam.

Com suspiros de luzes os viu desaparecer.

Virou-se e viu, sobre os campos à oeste, Beliel e os seus, e havia um peso e uma desesperança neles, pôde perceber. Talvez eles tenham embalado alguma esperança de que ele pudesse conseguir voltar para o céu, imaginou com pesar. Como se ele pudesse abrir e lhes apontar um caminho.

- Eles não sabiam que eu já não sou um AsaLonga? – estranhou, vendo os caídos irem-se embora. – Os caídos não sabiam?

- Acho que não. Quando você soube que não era mais um AsaLonga sua emoção se alastrou pelo mundo, e eles viram. Ah, Lázarus, você viu? Todos eles choraram por você.

- Bonito isso, não é mesmo, vigilante? - sussurrou emocionado. - Na maior escuridão a esperança. Podemos ser inimigos e opositores aqui, mas sempre somos o que éramos, apenas esquecidos, que tenho certeza que o tempo da experiência irá despertar e devolver. Sabe, não me sinto mal ou destruído por ser um caído. Até que gosto disso – falou abrindo as asas e se espreguiçando maravilhado.

> Essa experiência é demais... – gritou para além das montanhas.

Ariel sentiu seu corpo se arrepiar no grito luminoso daquele que começava a ver como amigo, seguindo com prazer o eco que corria para bem longe.

- Ariel – falou, como se contasse um segredo para o ar.

- Como?

- Meu nome. Meu nome é Ariel...

Lázarus inspirou demoradamente, tomado de prazer. Era um novo ar em um novo mundo. Coisas novas estavam acontecendo. Novos olhos para poder enxergar as coisas novas, sorriu.

- Que nome bonito – suspirou no ar frio do dia que se ia, imensa bola laranja sobre o horizonte.

- Também acho... – murmurou satisfeita. – Sabe que, não sendo mais um AsaLonga, você pode morrer, não sabe?

- Há muitas formas de morrer, Ariel – sussurrou, sua atenção voltada para o leste.

- O que há no leste? – perguntou, tomando-se de atenção.

- Dragões. Preciso ir. Obrigado por tudo, vigilante.

- Guerra de dragões? – espantou-se.

- Não. Alguns precisam de ajuda – declarou, começando a se elevar.

- Ajuda? Sério? – assustou-se, mostrando a face preocupada, o que chamou a atenção de Lázarus.

- Na primavera e no verão que os dragões são mais... incomodados pelos humanos e pelas pessoas, porque dizem que suas escamas ficam mais brilhantes e seus fluídos mais poderosos.

- Espere. Quero ir com você...

Lázarus parou no ar, atento ao rosto da vigilante. Pensativo, inspirou fundo.

- Por que não? – sorriu por fim.

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