《UMA ESTÓRIA DANATUÁ (ficção - português)》NUNCA PENSEI QUE EXISTIA ALGUÉM ASSIM

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Não sei porque surgiu e destruiu o mundo com que eu me acostumara. O que sou nesse novo mundo que você fez surgir?

Uivo estava extasiado.

Já ouvira estórias de Allenda, de suas batalhas ao lado do pai, quando sua família fora atacada por magos de terras longínquas. Nunca dera importância a isso, até esse dia.

Voltou novamente sua atenção para Adanu e sorriu, se sentindo até mesmo tocado. Ele estava ainda mais aéreo, como se toda sua realidade estivesse em suspensão. Ele saboreava o momento, Uivo percebeu. Se acaso ele fosse atacado naquele momento, por mais violento que o ataque fosse, tinha certeza de que apenas abanaria a mão como se fosse um ataque de abelhas, e manteria a atenção na presença de sua filha, tentando se convencer de que não estava sonhando, até cair morto, os brilhos abandonando sua vida.

- Lá... – alguém sussurrou, o que foi ouvido por todos, tal o silêncio que a tudo cobria.

Era um lume que avançava pelo meio da floresta e estava muito próximo da borda. Vinha lento e constante, como se estivesse pensativo.

- Então ela está voltando, a filha de um curupira e de uma manira[1]. Ela deve ser incrível – ouviu um suspiro ao seu lado, vindo de um lobisomem que confidenciava para um outro.

- Dizem que ela não pode virar os pés, como os curupiras – suspirou o outro.

- Deve ser por causa da mãe – sussurrou o primeiro.

Em expectativa, Uivo, tal como todos os outros, ficou vendo a luz refletida na copa das árvores, lentamente, como se estivesse pensando, cada vez se aproximar mais da borda da floresta enquanto, a luz refletida se mostrando progressivamente mais forte. Então, para surpresa de todos, o avanço parou, parecendo que titubeava, talvez indecisa se era isso mesmo que queria, como se se perguntasse se aceitaria mesmo abandonar tudo o que se tornara para encontrar o que já abandonara há muito tempo.

Virou o rosto e encarou Adanu, e sentiu seu coração doer, ao ver tudo o que revolvia no curupira. Em respeito à dor que nele vira tirou rapidamente os olhos dele e os voltou para a floresta.

O coração de Uivo bateu forte, a respiração suspensa, como suspensos estavam todos que a aguardavam.

- Não desista – sussurrou em pensamentos só para si. – Sei que tem medo, que tem receio, mesmo que negue isso – soprou na direção da floresta. - Mas, veja: todos estão aqui, seu pai está aqui, e o coração dele está parando, aguardando seu calor e a batida do seu, para então poder continuar.

Então, como um suspiro, viu a luz crescer suavemente nas copas das árvores, retomando o caminho.

Se alegrou por isso.

De súbito a luz pareceu explodir e, sem poder explicar, se sentiu muito feliz: a imagem daquela mulher surgindo das sombras da floresta foi como algo mágico pelo qual não esperava. Maravilhado com a visão a seguiu com cuidado, vendo-a se tornar maior a cada passo que dava, se revelando, linda como nunca vira igual. Altiva e tranquila, caminhando como se tivesse encontrado a paz de que tanto necessitava. Com a alma enlevada acompanhou enquanto ela avançava majestosa e simples pelo campo e, depois, pelo meio do povo, os olhos presos no pai, como se ninguém mais estivesse ali, a não ser ela e o pai.

Uivo não pode deixar de se alegrar ao ver o enorme sorriso na cara de Adanu, totalmente concentrado na filha.

Os dois brilhavam em brasa, com suas tatus parecendo linhas de fogo. Era, realmente, uma visão que o comoveu de uma forma como não poderia ter esperado.

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Na visão abandonada daquele ser se deixou, esquecido de tudo o mais.

Sem querer se pegou suspirando. Não pode deixar de sorrir, ao ver que não era o único que se sentia assim.

Com prazer sentiu a brisa criar vida novamente, com prazer enrodilhando folhas caídas, movendo com gentileza galhos que moviam troncos, numa dança hipnótica, brincando naqueles cabelos de milho e esvoaçando-os com graça e leveza, emprestando ainda mais magia àquele momento.

Como se em sonhos a viu parar, os olhos presos nos olhos de fogo do pai, na trilha em brasa que, suave, descia deles. Um sorriso intenso se desenhou em seu rosto, seu brilho sem controle aumentado, as linhas arabescadas como gavinhas se tomando de um rubor gentil e pensativo.

- Eu voltei, pai – a ouviu falar baixando a cabeça enquanto se ajoelhava, numa voz que, sabia, não conseguiria esquecer facilmente.

Um silêncio imenso e respeitoso a tudo envolvia, todos os seres atentos aos dois.

Viu quando Allenda levantou os olhos para o pai que era só sorrisos, e que não conseguia falar, suas tatus rubras como brasas que o vento fortalecia.

> Que bom te ver novamente, pai.

- Que bom te ver novamente, Allenda. Estou feliz agora – o viu conseguir falar a muito custo, a voz meio entornada.

- Eu também, eu também... Ainda mais sabendo que iremos juntos à guerra – ela falou se levantando em toda sua altura, o brilho esmaecendo lentamente.

- Essa é a parte que me entristece – sorriu junto Adanu, que agora parecia controlar o seu brilho.

- Sei disso, pai, mas vai superar. Fui feita para a guerra – a viu sorrir, enquanto entrava acampamento a dentro, acompanhando os outros conselheiros, que foram assumindo seus lugares na larga pedra, de frente para os que lá estavam.

Ainda pensativo, preso nas imagens, Uivo apenas ouviu, como se fosse ao longe, que seu pai e mentor, o pajé Tenebe, fora convocado para fazer parte do conselho como observador, o que ele aceitou.

Sorriu.

Voltou a si quando Tenebe surgiu no meio do povo.

Ele trajava apenas sua costumeira tanga, que quase lhe chagava aos joelhos, deixando ver seu corpo magro e ossudo. Seu rosto era encovado emoldurado por cabelos brancos e longos. Em sua mão o cajado velho e recurvo de goiabeira, cheio de nós, que nunca abandonava.

Tenebe parou aos pés da elevação de onde, respeitosamente, cumprimentou a todos do conselho com um leve movimento da cabeça. Uivo anotou as feições do tutumarambá Dene-dene que, apesar de retribuir o cumprimento do ancião, parecia reprovar com veemência tanta importância dada para os humanos, pois os considerava muito inocentes e seres perigosamente curiosos, apesar de parecer reconhecer que, por várias vezes, os conselhos e observações do velho homem se mostraram muito úteis.

Tenebe era o curandeiro e mago de uma das maiores aldeias tupi da região, localizada mais para o interior das serras do noroeste, onde ficavam as frias florestas de neblina. Sua fala firme e tranquila, seus pensamentos organizados e suas observações muito apropriadas trouxeram para ele um grande respeito dos seres, o que parecia não afetá-lo. Sua aparência ossuda e seus modos ágeis pareciam reforçar a força de sua presença.

Assim que Tenebe assumiu seu lugar dentro do conselho, Uivo mudou de lugar, se aproximando do velho mago, tendo o cuidado de não ficar dentro da área do conselho.

Ele era como um pai, apesar de insistir em querer transformá-lo em um mago. Mesmo com toda sua resistência e pouco caso aos seus ensinos mágicos, ele insistia, o que não deixava de ser divertido. Em todo o caso, se havia algo que aprendera com o velho humano era que todo conhecimento era bem-vindo.

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Sua atenção logo foi pega quando viu a drusa verde de Dene-dene ser posta à vista.

– Agora veremos o que as harpias descobriram sobre os invasores – o ouviu declarar, virando-a para si. – Essa é a drusa do conhecimento, que as harpias levaram para a borda das montanhas, onde a invasão está se desenvolvendo. O que elas observaram está aqui.

Com um passe desenvolto uma luz verde se levantou do interior da pedra como uma neblina. Havia sussurros dentro daquela nuvem, e imagens e sugestões de imagens.

Sob os olhares atentos as imagens foram se tornando mais nítidas. Como um filme foi se desenvolvendo, mostrando os pontos mais importantes do que as harpias haviam presenciado.

As faces dos conselheiros, que ainda não tinham conhecimento da marcha das harpias[2], a cada imagem mostrada iam ficando mais tensas, enquanto os outros conselheiros os colocavam a par dos acontecimentos desde que souberam da ameaça dos demônios das montanhas e de seus dominados. Os rostos vincados e amarfanhados pelas eras vincaram-se e aprofundaram-se ainda mais.

Dentro da luz verde puderam ver as imensas hordas dos inimigos aos pés das montanhas, e como estavam começando a se alastrar para dentro das terras baixas. Sons de revolta e bravatas se levantavam, como ameaças aos seres estranhos que de quando em quando apareciam na luz verde.

O sol escorregou pelo topo do mundo, medindo o tempo que se ia.

Dene-dene tirou os olhos dos semblantes dos conselheiros e se deixou distrair com aquele ajuntamento e com aquele burburinho, que parecia até festivo. Devagar passeava os olhos pelo ajuntamento quando deu com um estranho nefelin no meio do conselho, perto de Tenebe.

Dene-dene estranhou sua presença ali, dentro do conselho, como se se sentisse convidado para ser um conselheiro no conselho de guerra. Já o vira antes, quando o conselho dos anciãos se reunira alguns dias antes, para apreciar as informações dos espiões que haviam sido enviados para trazer mais informações dos preparativos da invasão daquelas terras. Claramente via tratar-se de um híbrido, uma raridade, nascido de uma união improvável, segundo alguns poucos.

Dene-dene, após ter visto um aparte anterior do jovem no conselho dos anciãos, que quase acabara em confronto com um lobisomem, procurara saber dele, e teve receios de problemas à frente. Ele parecia aguardar o início da reunião, o que o deixou incomodado, como incomodava muitos outros também, percebia. Não havia nada que justificasse sua participação num conselho.

O marambá o examinou disfarçadamente por mais algum tempo.

- Por que o jovem nefelin está reunido com o conselho de guerra? Há algum feito memorável que não nos informaram, que o qualifica, humano? - perguntou se dirigindo ao velho mago. – Não ouvi seu nome ser anunciado para ser um conselheiro.

O burburinho foi cessando, todos se voltando para observar o nefelin e o velho mago.

Uivo sorriu sem graça. Sem se aperceber se aproximara demais e entrara na área do conselho.

- Me desculpe... Me aproximei sem querer – falou fazendo uma mesura, pronto a se afastar.

- A culpa foi minha, e peço desculpas – falou Tenebe. - Ele está sendo treinado para me suceder – justificou para o conselho. – Ele apenas se distraiu.

- Eu sei que foi assim – Adanu interrompeu. – Eu o conheço de longa data, e todos aqui o conhecem. Distração é normal... - sorriu.

- Será uma distração ou uma presença imposta? – reclamou o anaquera Otenv, um perigoso brilho rondando seus olhos. - Sabemos que é um raro nefelin. Dizem que é um caso raro de um puma das montanhas, apesar de não se parecer com eles.

Uivo parou e voltou seus olhos para o anaquera.

Adanu prestou atenção em Otenv, receoso que houvesse confusão, pois todos sabiam da intensa animosidade permanente entre Anaqueras e lobisomens e onças.

O anaquera passou os olhos pelo nefelin, como se fosse algo desprezível, denunciado pelo seu sorriso maldoso.

> Sua origem não o credencia, nem suas virtudes e capacidades mostradas até o momento, se é que podemos entender assim – continuou Otenv com o prazer em sua voz. - Que se afaste, se não há nada que o credencie – falou, voltando sua atenção para Tenebe.

Adanu relaxou, vendo a face tranquila do menino nefelin.

– Por hora o confronto está afastado – suspirou.

- Meu nome é Uivo – falou o nefelin com tranquilidade e nobreza, adiantando-se ao pajé, que o olhou com repreensão. – Não foi minha intenção atrapalhar o conselho – disse respeitoso. – Apenas me distrai, pelo costume de observar o meu mestre. Sou um aprendiz, senhor. Peço permissão para me afastar.

Dene-dene o examinou profundamente, surpreso com a força do menino.

- Claro, meu jovem. Você é aprendiz de um mago, não de um conselheiro nem de um observador. Então pode observar como os outros, mas não como conselheiro – Dene-dene falou tranquilamente, fazendo sinal para que ele se afastasse.

Tenebe virou-se para o rapaz, que baixou a cabeça em cumprimento ao conselho.

Com tranquilidade Uivo recuou até uma peroba onde ficou encostado, observando com muita atenção.

Depois de alguns minutos de silêncio a tensão pareceu se dissipar. Todos ignoraram a presença de Uivo e as vozes foram se alteando levemente.

O burburinho foi crescendo, inflamando os seres. As questões do que fazer rapidamente foram escoando para dentro da floresta. Em pouco tempo mais e mais pessoas e animais e homens e nefelins chegavam ao local, alguns dispostos a contribuir, a maioria afoita para observar, e muitos desesperados para se mostrarem. O alvoroço, alegre apesar de preocupado, era intenso. Vozerios nasciam e se dissipavam em ondas e bolhas enquanto mais habitantes das florestas e descampados e águas iam se ajuntando, dando mais trabalho para os oradores. A guerra dominava as mentes e todos queriam sugerir estratégias para combater os thianahus[3] famigerados.

Dene-dene pigarreou, chamando a atenção de todos, quebrando a tensão crescente e perigosa. Como se estivesse pesado demais se levantou e encarou os presentes.

- Guerra, guerra... Sim, parece que a verdade é que a guerra realmente chegou - falou dirigindo-se ao conselho de guerra e aos presentes. – Invadiram nossas terras, atacaram nossos povos, os tornaram prisioneiros. E eles continuam a avançar, a tomar nossas terras. Temos que pensar em como pará-los, num primeiro e urgente momento, para depois empurrá-los de volta para suas montanhas denteadas, escuras e frias, e vencê-los.

- Como? - irritou-se um lobisomem levantando a voz enquanto se arqueava em toda sua altura e arrepiava os pelos vermelho-fogo ao longo das costas. - Demorar é um erro... Está dizendo que temos que ir devagar? Essas terras não são deles! Eles têm que movimentar tudo de que precisam, e não nos conhecem tão bem. Aqui a vantagem é nossa - falou com as terríveis presas à mostra. - Pois eu lhes digo que a melhor defesa sempre foi o ataque. Num grande ataque...

- E quem disse que não é? - sorriu Dene-Dene apaziguador, interrompendo-o.

- Concordo com ele - apartou um Atandé tornando-se um pouco mais translúcido. - Eu digo que o melhor seria montarmos um comando e dirigi-lo diretamente para o coração deles. Para vencer precisamos chegar ao coração deles, destruir sua alma. Na guerra dosvivos foi um ataque em sua cidade principal que os fez recuar, que os devolveu para as montanhas.

- Um grupo pequeno seria facilmente dizimado – avisou uma sedenerá.

- Não deixa de ser uma opção, com a atenção deles em outros locais... - Dene-Dene deu um sorriso e fez uma pausa enquanto sondava as caras que o observavam. - Mas, em minha opinião, eu entendo que devemos, antes de tudo, pensar em como bloquear o avanço deles, rechaçar o exército que já está sendo ajuntado nas bases das montanhas, numa preparação para nos invadir, como bem viram no cristal - observou. - Acho que sentiram que precisamos dar combate a eles, e bem rápido, impedindo que, ao abocanhar nossas terras, liberem os sombras e os mantas sobre elas.

Vozes e urros se levantaram, tornando o ar ainda mais carregado.

O tempo pareceu se esticar e se comprimir.

Por muito tempo planos foram sugeridos e descartados, para serem recuperados e novamente descartados. Havia um alvoroço, um burburinho elétrico no ar. Em muitos momentos alguém do conselho se levantava e acalmava os ânimos, direcionando-os para o problema da invasão. Mesmo assim, em três ocasiões, houve confronto violento, sendo um deles entre um nefelin e uma pessoa, onde os dois saíram muito feridos. Manter os ânimos controlados estava exigindo muito esforço, e não só do conselho.

- É uma solução muito perigosa - reclamou com veemência MassaFúria, sobre a ideia que parecia exercer grande fascínio sobre boa parte dos que estavam ali, que era a de atacar de vez com todas as forças disponíveis.

- Uma temeridade - reforçou Uivo, o jovem nefelin, falando com tranquilidade.

Adanu levantou a cabeça e observou com cuidado o jovem guerreiro; o corpo poderoso e os olhos decididos e tranquilos de um líder natural. Imediatamente houve silêncio, todos se voltando para o jovem, que continuou impassível.

> Não os conhecemos, não conhecemos suas armas; o terreno também é estranho para a maioria de nós, ao contrário deles, que já nos sondaram, conhecendo nossas fraquezas e nossas forças, como já sondaram e conhecem a região. Vocês viram o condor, vocês viram o que as harpias nos trouxeram. Apesar de nos dar uma amostra deles, não podemos ceder à tentação de atacá-los às cegas. Eles estão organizados e parecem enxames nas montanhas. Já pensaram que podemos estar sendo levados para uma armadilha? Já pensaram que podemos estar sendo levados a pensar em fazer o que nos determinaram fazer?

- E o que o jovem nefelin aconselha? - desafiou um lobisomem com ar de desprezo, que não surtiu qualquer efeito sobre o rapaz, mas fez com que vários olhassem desafiador para o solitário nefelin.

- Organizar os guerreiros que os estão combatendo, como se fossem muros a frear seu avanço. Precisamos ganhar tempo para podermos montar mais muros protetores, arrumados como uma série de cercas de contensão ao longo do caminho natural, caminho que, aliás, podemos fazer com que tomem, no entorno do alagado, de tal forma que se uma linha cair os invasores serão surpreendidos com mais muros. Também podemos emboscá-los, apresá-los,... aumentar nosso conhecimento sobre o inimigo.

- Então? - debochou uma anaquera.

- Então, quando nós estivermos mais fortes e preparados, e quando eles se sentirem abalados e receosos de nós, aí então iremos atacá-los e destruí-los de encontro às montanhas de onde não deviam ter descido.

- Essa é a estratégia de um covarde – debochou o lobisomem. - Mas isso é compreensível, não é mesmo? Se nem pantera de verdade você é...

Adanu sorriu, seus olhos totalmente fixos no jovem nefelin.

Um silêncio carregado de expectativas caiu sobre tudo, a maioria torcendo por confusão, desejosos de um combate.

Adanu olhou para Tenebe e percebeu um pequeno sorriso pendurado no rosto, sinal de quanta confiança o velho humano tinha no jovem.

Então seus olhos passaram por todos, vendo que estavam presos no nefelin. Passou-os por Allenda, vendo que também ela estava atenta ao jovem.

Também ficou a observá-lo com interesse.

Uivo estreitou os olhos e fixou-os diretamente no lobisomem. Sem qualquer hesitação caminhou lentamente até ele, que desembainhou as garras e tomou uma postura de ataque, os pelos das costas arrepiadas.

O velho mago humano abriu mais o sorriso e deu de ombros.

- Quanto a eu ser uma pantera ou não, não importa, a não ser para você, caso veja incômodo nisso – falou com tranquilidade, os olhos fixos nos do outro. - Quanto à estratégia ser de um covarde, digo que não, não é! Essa é a estratégia de quem espera que os entes, e os animais e os nefelins e os homens livres continuem livres, senhores de seus destinos. Essa é a estratégia de quem espera o momento certo para atacar e destruir, simplesmente porque trabalhou para que esse momento existisse. Atacar por atacar seria a atitude de um inocente, ou de um demente. Acho que esse não é o seu caso, não é mesmo?

Ante os olhos tranquilos e decididos do nefelin o lobisomem ficou desconcertado e acabou por se apaziguar, e o ar de confronto amainou. Dene-Dene e MassaFúria olharam satisfeitos para o jovem, que se afastava do lobisomem e retornava para junto da árvore onde estivera.

Allenda, que a tudo seguia com tranquilidade, tirou os olhos do nefelin e prestou atenção em Adanu, e viu que havia admiração nos modos dele. Deu de ombros, voltando sua atenção para a assembleia, conferindo a reação de cada um.

Vendo que nada de interessante aconteceria, perdeu o interesse.

- Concordo com o estranho humano. Precisamos de tempo para conseguirmos nos organizar, ao menos, o minimamente possível - ouviu-se a voz inconfundível, para surpresa de todos, de um anaquera.

Uivo sorriu, satisfeito. Agora havia um ente, tomando para si a defesa de sua ideia. Em silêncio se recostou novamente na peroba e ficou observando. Sugestões foram se sobrepondo, até que Uivo percebeu uma tensão enorme no ar, e um respeito que não havia visto até então.

Era Otag, tinha certeza. O mesmo Otag que participara da primeira guerra contra os demônios da montanha, o mesmo Otag que desceu enraivecido a montanha para exigir reparação de seus antigos companheiros que haviam abandonado muitos dos seus sobre as montanhas dos demônios; o mesmo atandé que atacara o conselho daqueles recuados dias[4].

Com interesse seguiu seu raciocínio sobre a tática que encetara naqueles velhos dias, e sua aceitação para fazer parte do atual conselho de guerra.

O dia avançou ainda mais, e a reunião foi dada como finalizada.

Pensativo, Uivo se juntou a Tenebe.

Ao pressentir um movimento ao lado ele se virou, e deu de cara com Allenda. Girou um tantinho o rosto e viu Adanu, que vinha ao encontro da filha. Ficou confuso quando o viu parar e ficar observando, uma estranha curiosidade presa no rosto. Voltou-se novamente para Allenda.

Adanu vira o exato momento em que ela se encontrou com Uivo. Ele estava distraído, conversando com Tenebe, quando ela passava bem ao lado. Por acaso ele se virou, e deu de cara com ela.

Os dois pararam, os olhos fixos.

Adanu viu Uivo ficar sem qualquer reação, parado, o olhar perdido, a respiração suspensa, como se tivesse sido transformado em uma estátua. Parecia que os olhos da flor-do-mato prendiam sua vontade, prendiam sua alma.

Mas Allenda também o observava, absorta, abandonada, uma outra estátua abandonada.

Adanu retomou a caminhada e se aproximou do grupo. Após trocar olhar com Tenebe os dois se afastaram, ambos com um sorriso maroto no rosto.

Com tranquilidade sentaram sobre um cupim, os olhos avaliando os dois.

- O que acredita que eles estão fazendo? – Adanu perguntou divertido para Tenebe.

- Isso vai ser complicado – riu Tenebe.

- Ora, e por que seria? – estranhou Adanu.

- Porque são dois guerreiros muito fortes. Acho que vão se estranhar no começo – riu Tenebe novamente.

- Veja – Adanu apontou para seu lado direito, perto da primeira costela.

Tenebe já a vira muitas vezes, como as outras marcas de ferimentos de Adanu. Aquela parecia ter sido feita por uma faca muito afiada.

- Não me diga que foi um presente de Bella – riu surpreso.

- Sim, dela. E tenho muitas outras em mim.

- Aposto que ela também tinha algumas marcas...

- Ah, sim, claro. Algumas marcas de queimaduras, pontas de flecha e... E muitas outras – sorriu saudoso. – Foi por muito pouco que não deu certo... – suspirou.

- Acho que isso não teria sido possível, meu amigo. Eu me lembro de vocês dois. Destino tem dessas coisas, de brincar.

- Quem sabe esse seja o destino deles?

- Sim, seria bom. Fazem um belo casal.

- São sim... Altos, fortes,... e as almas são muito bonitas.

Tenebe se virou, satisfeito, encarando os dois jovens.

- Isso que estamos vendo é... promissor, não é mesmo?

Adanu observou a filha, e depois o humano.

- É, é sim... – suspirou.

Então prestou mais atenção em Uivo, e não pode deixar de sorrir pelo jeito do menino. Ele estava visivelmente desesperado.

- Sabemos que o tem como um filho. É palpável que você o admira, não é mesmo?

- Sem dúvida! Eu o criei. Sei do que ele é capaz. Ele tem muito valor.

- Como futuro pajé?

- Ah, isso nunca vai acontecer. Ele é um guerreiro...

- Que assim seja então, meu amigo. Quem você acha que vai acordar primeiro?

- Hummm... Quem você acha?

- Allenda... Ela está no controle. Ele está agindo como caça.

- Concordo... – riu Tenebe. – Mas, ele vai aprender logo...

- Tomara... Ah, olhe só – Adanu chamou atenção para os dois.

Allenda mexeu a cabeça levemente, e despertou. Ela tossiu suavemente enquanto seu rosto se avermelhava um tantinho. Uivo despertou também, e sorriu sem jeito. Distraído, pôs sua atenção no chão, que remexeu com um pé. Quando levantou os olhos Allenda tinha ido. Ele se virou e a viu com o pai e Tenebe. Ele ficou olhando-a, distraído, esquecido. Então ela virou o rosto e o observou.

Ele sentiu seu coração crescer e seu cérebro ser socado. Tudo aquilo era novo, e muito gostoso, sentiu. Respirou profundamente, sua mente girando. Ficou um tanto constrangido ao ver que Tenebe se despedia e se aproximava com um sorriso indecente no rosto. Em poucos segundos imaginou perigos inimagináveis, e ele a protegia; imaginou que a surpreendia com suas capacidades e... Então suspirou novamente. Ela era uma guerreira incrível, pelo que ouvira dizer. Ele era apenas mais um nefelin.

- Então, acorde – falou Tenebe, dando-lhe um tapa no braço. – Aposto que nem sabe o que te aconteceu, não é mesmo?

- Ora, eu... Ela tem olhos incríveis e... Acho que foi...

- Isso se chama toque, Uivo. Toque, toque na alma... Isso é raro. – Mas, isso fica pra depois. Vamos, temos que conversar – falou divertido, levando-o pelo braço.

Adanu olhou para Allenda, em pé ao seu lado, que observava distraidamente o nefelin se afastando em companhia do velho humano.

- Então, filha... – falou chamando sua atenção. - Se não fosse a guerra, voltaria?

Allenda suspirou. Saindo de seus pensamentos fixou um olhar doce nos olhos do pai.

- Sabe, pai... A saudade vinha aumentando, saudades dessa terra, saudades de você. Eu sabia que meu tempo estava para mudar. O chamado apenas confirmou que eu estava pronta.

- Que bom, filha. Que bom... Vamos para casa? Acho que precisamos conversar muito, filha... Eu quero saber de tudo o que te aconteceu.

- Também quero saber de você, meu pai... – concordou, acariciando suave a cabeça de fogo do ArrancaToco. - De você, dessa terra, dessas gentes... – concordou ajeitando a aljava e o arco. Depois, tomando o braço do pai, falando baixinho e rindo de felicidade entraram na mata, que pareceu suspirar enquanto as copas douradas esmaeciam no sol que se punha do outro lado do vale.

[1] Sobre as diversas espécies de pessoas, favor consultar ANEXOS, ao final deste livro.

[2] A marcha das harpias, bem como outros atos pra obter informação sobre os invasores, podem ser encontrados nos volumes “OS DANATUÁS”.

[3] Como eram chamados os que moravam sobre as altas montanhas a oeste.

[4] Para maiores informações sobre essa passagem, vide os volumes “OS DANATUÁS”.

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